domingo, 26 de outubro de 2008

As velas que clareiam as favelas

CIDADES: 26/10/2008 - Imagem: Normando Sóracles - Juazeiro é uma cidade muito engraçada, cheia de piadas. Muitos não entendem seu senso de humor trágico. Definitivamente a culpa não é dela. Ela até que se esforça para ser entendida através de manifestações óbvias. Mas, se ninguém ri de suas anedotas, ela ri da gente, com sua gargalhada sonora e sua boca socialmente banguela. A favela que cresce nos arredores da Matriz de Nossa Senhora das Dores é uma de suas piadas sujas. Quando uma quenga de pouco mais de vinte anos, usando mini-saia apertada, quebrando o buxo na canela, exibe a sua tabela de preços através do vermelho néon do seu baton da avon, encostada numa estaca que segura o barraco, ouvindo Aviões do Forró num micro-som fanhoso, a cidade também exibe ali suas malícias e seus malefícios, frutos das oportunidades que ela oferta e dos oportunistas que a infestam.
São as duas faces de uma mesma moeda. Dinheiro esse que corre léguas tiranas dentro e fora dos muros da cidade, às vezes demagogicamente ostentado, às vezes sorrateiramente cultivado. Assim cresce a Juazeiro do Norte dos contrastes. Sendo que vez por outra o passado e o presente se encontram nas esquinas, nos porões e nas salas mais requintadas. E é aí que se percebe facilmente o cinismo patético dessa cidade. Padre Cícero veio para acabar com a promiscuidade do entreposto Tabuleiro Grande. O tempo passou, Juazeiro do Norte saiu do Tabuleiro, mas o Tabuleiro não saiu do Juazeiro do Norte.
Se nesse mesmo espaço geográfico, de um lado existe o mais simbólico templo de devoção e fé dos romeiros, em que entre uma oração e outra, esmolas generosas são ofertadas em forma do dízimo voluntário, do outro lado existe o templo da promiscuidade, erguido com o poder dos interesses escusos, com pregos, papelão, restos de madeira, palhas, flandres e descasos e descasos, em que entre uma cachaça e outra, esmolas generosas são ofertadas em forma de arame farpado para curral. É nesse espaço geográfico em que a multidão, em tempos de romaria, se divide e se multiplica.
De acordo com o filósofo alemão Walter Benjamim, "na multidão o que está abaixo do homem entra em relação com o que impera acima dele e é essa promiscuidade que engloba todas as outras". Isso é a pura verdade. Vale ressaltar, que a multidão, em sua comédia humana, enquanto massa se apresenta invisível socialmente, em torno da coisa comum que aquele aglomerado expressa, estão ocultos os interesses privados, quase impossíveis de serem detectados de imediato. No entanto, sob um olhar mais atento, os mecanismos dessa risada irônica da cidade, que ridiculariza qualquer convívio entre o sagrado e o profano, vêm à tona.
É difícil de acreditar em falta de visão política, que não vislumbra uma cidade turística, além de romeira. Também é difícil de acreditar na máxima de que não se pode solucionar o problema da noite para o dia, uma vez que todos os outros santuários de grande fluxo turístico conseguiram, sendo Aparecida o maior exemplo disso. Entender a tolerância para a continuidade dessa favela como uma manobra do espírito humanitário, em que todos têm o direito de sobreviver de alguma forma, é tão infantil quanto acreditar na fada dos dentes.
É claro que a cidade ri de toda essa inocência, através dos trejeitos dos seus travestis, com seus sexos e jóias falsas. É bem mais fácil de acreditar em um jogo de interesses menores, do que na “imposição de uma mazela social sem fim, culpa da desigualdade?.
A permissividade da prostituição, da falta de fiscalização sanitária e da ocupação indevida do espaço, tem uma causa óbvia, e que foge das limitações da administração pública. Esse curral não é só mantido pela troca de favores e pela compra de votos.
Existe aí uma troca de interesses públicos e privados, que a cidade esconde debaixo do braço, para alguns, para outros, debaixo do sovaco. Tudo, na realidade, é uma questão de postura, conta piada quem pode e ri quem deve. Fonte: Marcos Vinícius Leonel Tavares